terça-feira, 14 de outubro de 2008

poesia in crônica

(Porque a gente encontra pedacinhos de nós por aí, nos ditos, nos feitos e nos escritos de outros. Achei bonito demais pra guardar só pra mim.)
Escorrendo
Aos 5 anos de idade o mundo é esmagadoramente mais forte do que a gente. (Aos 30 também, mas apren- demos umas manhas que, se não anulam a desproporção, ao menos disfarçam nossa pequenez.) A ignorância não é uma bênção, é uma condenação: compreender a origem dos nossos incômodos faz uma grande diferença. Mas como, com tão poucas palavras ao nosso dispor? Palavras são ferramentas que usamos para desmontar o mundo e remontá-lo dentro da nossa cabeça. Sem as ferramentas precisas, ficamos a espanar parafusos com pontas de facas, a destruir porcas com alicates.
Com 2 anos, meu nariz escorria sem parar na sala de aula. Eu não sabia assoar, nem sequer sabia que existia isso: assoar. Apenas enxugava o que descia na manga do uniforme, conformado, até ficar com o nariz assado. Lembro-me bem da sensação da meia sendo comida pela galocha enquanto eu andava. A cada passo, ela ia se engruvinhando mais e mais na frente do pé, faltando no calcanhar, e eu aceitava o infortúnio como se fosse uma praga rogada pelos deuses, uma sina. Não passava pela minha cabeça trocar de meia, desistir da galocha, pedir ajuda aos adultos: a vida era assim, não havia o que fazer.

Numas férias, meu pai apareceu antes do combinado para pegar minha irmã e eu na casa dos meus avós. Durante 400 quilômetros, falou que existiam pessoas boas e pessoas más, que aconteciam coisas que a gente não conseguia entender, que mesmo as pessoas más podiam fazer coisas boas e as pessoas boas, coisas más. Já quase chegando a São Paulo, contou que nosso vizinho, de 6 anos, tinha levado um tiro. Naquela noite, enquanto as crianças da rua brincavam – mais quietas do que o habitual, sob um véu inominável –, um dos garotos disse: “Bem-feito! Ele é muito chato”. Hoje, penso que pode ter sido sua maneira de lidar com uma realidade esmagadoramente mais forte do que ele. Meu vizinho, felizmente, sobreviveu. Nossa ingenuidade é que não: ficou ali, estirada entre amendoeiras e paralelepípedos, sendo iluminada pela lâmpada intermitente de mercúrio, depois que todas as crianças voltaram para suas casas.

Antonio Prata

Publicado na seção Era uma vez da revista Nova Escola impressa, mas disponível também, aqui.

Um comentário:

Thiago disse...

quando a gente relata coisas sobre a infância a gente percebe o que é imperecível, e o que não é. adorei esse texto, amei o texto abaixo sobre o seu vestido. eu gosto de histórias com crianças porque elas são cheias de verdade.

e como sempre, essa versão eu sempre eu aprovo.
beijos!