sexta-feira, 3 de outubro de 2008

egocentrismo

"Sem Ana, Blues..

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não- continuação era a única espécie de não continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. (...)
Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, perguntando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar. Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento- quando, não o momento- depois, e no momento- quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como ia dizendo, dei para beber, como é de praxe. (...)
O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para- você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto- falta- quero- voltar. Isso nunca aconteceu..(...)"
Caio Fernando de Abreu
(Achei aqui, acho que vou querer ler Caio Fernando Abreu, por isto e por isso também.)

4 comentários:

Guilherme Antunes disse...

Eu queria muito conhecer Ana, tão somente e além do mais, pelo que Ana é.

Ana Aitak disse...

Achei isso uma das coisas mais bonitas que alguém escreveu/disse a Ana.

Thiago disse...

Nossa Ana, eu amei esse texto. Também dei uma olhada nos links que vc relacionou logo no final.

"por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era."

Tudo maravilhoso aqui no seu cantinho! Beijos e ótima semana!

Anônimo disse...

Lindo demais. mesmo, mesmo. =)

Nossa, quer "ouvir" uma coincidência? Comprei HOJE o cd MTV unplugged da Julieta Venegas em que ela canta Ilusión em dueto com Marisa Monte. rs! E o mais engraçado é que eu nunca tinha visto o vídeo das duas antes, achei ele aqui embaixo agora em seu blog e levei um susto! rs...

Beijos e - mais uma vez -, enorme prazer em "pousar" por aqui!